Manoel de Barros
Manoel por ManoelEu tenho um ermo enorme dentro do meu olho.
Por esse motivo do ermo não fui um menino peralta.
Agora tenho saudade do que não fui.
Acho que o que faço agora
é o que não pude fazer na infância.
Faço outro tipo de peraltagem.
Quando eu era criança,
eu devia pular o muro do vizinho para catar goiaba.
Mas não havia vizinho.
Em vez de peraltagem, eu fazia solidão.
Brincava de fingir que pedra era lagarto.
Que lata era navio.
Que sabugo era um serzinho mal resolvido
e igual a um filhote de gafanhoto.
Cresci no chão, entre formigas.
De infancia livre e sem comparamentos.
Eu tinha mais comunhão com as coisas do que comparação.
Porque se a gente fala a partir de ser criança,
a gente faz comunhão: de um orvalho e sua aranha,
de uma tarde e suas garças, de um pássaro e sua árvore.
Então, eu trago das minhas raízes crianceiras
a visão comungante e oblíqua das cisas.
Eu sei dizer sem pudor que o escuro me ilumina.
É paradoxo que ajuda a poesia e eu falo sem pudor.
Eu tenho que essa visão oblíqua vem
de eu ter sido criança em algum lugar perdido,
onde havia transfusão da natureza e comunhão com ela.
Era o menino e os bichinhos.
Era o menino e o sol.
O menino e o rio.
Era o menino e as árvores.
Manoel de Barros, Memórias Inventadas para crianças. São Paulo: Planeta Brasil, 2007
1 comentário:
Linda,
A sua poesia é singela e pura como o dizer de uma criança...
Divulgue este poeta mundial!
bjs,
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